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Sexo e terror no cinema pioneiro de Rosângela Maldonado

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Nascida no interior paulista, Rosângela Maldonado fez fama no Rio de Janeiro como radialista, escritora e atriz, e encontrou na Boca do Lixo uma forma de se expressar como cineasta. Somando-se ao erotismo, o principal ingrediente dos filmes que eram feitos na Boca, Rosângela conseguiu combinar uma série de elementos fantásticos e pitorescos nos dois filmes que realizou como cineasta e produtora, tornando-se a primeira mulher a dirigir um filme de terror no Brasil.

Rosângela nasceu em 13 de agosto de 1928, na cidade de Franca, em São Paulo. Sua carreira artística teve início no rádio, veículo no qual trabalhou como locutora e atriz, desempenhando papéis em radionovelas. A partir dos anos cinquenta, ela passou a integrar elencos de peças de teatro e de dramas na televisão. Foi também neste período que Rosângela estreou no cinema, sendo referida nos jornais apenas pelo primeiro nome, que foi como ficou conhecida do público da época. Ao longo de sua carreira, que atravessou três décadas, ela atuaria em cerca de vinte filmes (embora tenha afirmado em entrevistas que participou de mais de cinquenta filmes, informação que não é confirmada pelas fontes disponíveis). Seu primeiro papel relevante foi na adaptação da novela radiofônica cômica Milagre de amor (1951), mas também pode-se destacar neste momento inicial o drama religioso Almas em conflito (1953), feito para o cinema. Muito querida pelo público, Rosângela foi eleita Rainha do Carnaval carioca em 1954 e, a partir de 1955, obteve reconhecimento como atriz, colecionando faixas de Rainha do Cinema Brasileiro por cinco anos seguidos. Sua carreira na tela grande é formada ainda por filmes como Deu a louca no cangaço (1969), dirigido por Fauzi Mansur, e O pornógrafo (1970), único longa-metragem realizado por João Callegaro, com roteiro do crítico e cineasta Jairo Ferreira, e no qual Rosângela faz uma participação especial. Ambos os filmes foram a porta de entrada da atriz na Boca do Lixo, região da metrópole de São Paulo onde se concentravam as
produtoras independentes especializadas em filmes de sexploração e que reunia alguns dos grandes talentos em atividade nos anos 1970.

Foi se aventurando na Boca que Rosângela conheceu a excêntrica figura de José Mojica Marins, que àquela altura já havia fincado a bandeira de principal representante do horror nacional, tendo explorado seu personagem mítico Zé do Caixão em três longas-metragens: À meia-noite levarei sua alma (1964), Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967) e O estranho mundo de Zé do Caixão (1968).  A primeira parceria entre Rosângela e Mojica se deu em Finis hominis (1971), onde Rosângela desempenhou um papel pequeno, mas uma personagem de destaque veio em sua próxima colaboração com o cineasta: Sexo e sangue na trilha do tesouro (1972), sobre um grupo de aventureiros que se entrega à própria sorte no meio da selva amazônica em busca de um suposto carregamento de ouro que estaria dentro de um avião acidentado na mata. O título do longa-metragem não poderia ser mais justo, visto que alterna muitas sequências de sexo e assassinatos cometidos por ganância. Desta maneira, o grupo vai dissipando, até que resta apenas um membro inusitado. A morte da personagem de Rosângela é tipicamente mojicana em sua aflição e sadismo: ela é picada por um escorpião peçonhento ao calçar um par de botas.

Ao final da década de setenta, empenhada em promover seu próprio trabalho, Rosângela abriu a produtora Panorama Filmes do Brasil, pela qual realizou e lançou, ambos em 1978, os filmes A mulher que põe a pomba no ar e A deusa de mármore: escrava do diabo. Estes dois filmes, baratos e independentes, a colocaram na posição de primeira mulher a dirigir terror no cinema brasileiro. A artista entregou-se por completo às suas produções, cuidando pessoalmente do roteiro, figurino, maquiagem e de outros aspectos técnicos; além, é claro, da direção, compartilhada com José Mojica Marins (sob o pseudônimo de J. Avelar).

A comédia erótica com elementos de terror e ficção científica A mulher que põe a pomba no ar chegou aos cinemas em abril de 1978, e traz a própria Rosângela no papel de uma cientista que, após ser traída pelo marido, dedica-se à invenção de um método para se vingar de homens adúlteros. Ao descobrir uma maneira de transformar pessoas em criaturas aladas, faz com que duas jovens se tornem mulheres-pombo e as utiliza como armas para atacar os maridos infiéis no meio do ato sexual com suas respectivas amantes. Outras mulheres vítimas de traição e interessadas em punir seus companheiros se unem à cientista em seu mirabolante plano de vingança. Por sua vez, em A Deusa de mármore: escrava do Diabo, lançado em novembro de 1978, Rosângela interpreta uma mulher de dois mil anos de idade que faz um pacto com o Diabo (“Seu Sete Encruzilhada”, interpretado por Mojica), oferecendo a ele em sacrifício as vidas dos homens com quem ela faz sexo, recebendo em troca a capacidade de permanecer sempre jovem. No final ela é castigada por sua vaidade e tem a aparência revertida à sua verdadeira idade. Infelizmente, ambos os filmes passaram despercebidos pelos cinemas, despertando pouco interesse de público e crítica. Ainda que estes filmes tragam consigo o mérito de um avanço para a luta feminina no cinema nacional – uma mulher brasileira no comando de filmes de terror –, ambos não conseguem escapar das marcas do machismo difundido nos filmes da Boca do Lixo e no país como um todo, inclusive em sua cultura. Ou seja, em termos de representação feminina, não há novidades; pelo contrário, os filmes reforçam clichês e estereótipos frequentemente associado às mulheres, como o medo da traição e do envelhecimento e a necessidade de sempre estar atraente para merecer a companhia dos homens.

Depois de tantos anos de glória, Rosângela Maldonado mergulhou no ostracismo a ponto de parecer que sua história está sempre sendo contada pela primeira vez. Consta que a artista foi acometida por um ferimento durante uma filmagem que acabou resultando na doença de chagas, tendo que viver desde então com as complicações trazidas pela enfermidade. 2012 foi quando apareceu pela última vez na mídia, numa reportagem da Rede Record Rio Preto no programa Balanço Geral. Aposentada e reclusa, dividia com o marido uma pequena casa em Guarani d’Oeste, uma cidadezinha com menos de dois mil habitantes localizada no noroeste do estado de São Paulo, perto da divisa com Minas Gerais. Rosângela faleceu naquele mesmo ano, em 17 de junho, mas essa informação levou quase dez anos para vir a público*. Numa época tão promissora em que a cada ano as mulheres têm tomado as rédeas na direção de filmes de terror no Brasil, parece-me justo nos lembrarmos de Rosângela Maldonado e de suas contribuições pioneiras ao cinema fantástico nacional.

Texto publicado originalmente na revista Cineplot em agosto de 2017 e reeditado para esta publicação.
* Dado adicionado na reedição do texto.

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Pesquisadora, crítica, curadora e realizadora cearense radicada em São Paulo, escreve regularmente sobre filmes para livros, encartes de homevideo e catálogos de mostras, além de integrar curadorias e júris de festivais pelo país. Doutoranda em Comunicação Audiovisual (UAM-SP) com pesquisa sobre filmes de horror brasileiros feito por mulheres, ministra palestras e cursos livres sobre cinema. Atualmente, realiza dourado-sanduíche como pesquisadora convidada na Universidade de Sorbonne (Paris). Mantém a revista eletrônica Les Diaboliques, com foco em filmes de horror.

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