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Fantastic Geogenre: I Encontro de Realizadoras Europeias Especializadas no Gênero Fantástico

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Nos últimos anos, o Festival de Sitges vem apostando no programa Woman in Fan, uma iniciativa que visa resgatar a contribuição de mulheres pioneiras dentro do gênero fantástico e destacar o trabalho de realizadoras contemporâneas. Através de laboratórios de desenvolvimento de roteiro e da facilitação de networking, o festival incentiva a integração de novas realizadoras no universo do cinema fantástico, que, por décadas, ficou bastante restrito aos homens.

Este ano, Sitges apresentou pela primeira vez o Fantastic Geogenre, uma conferência de realizadoras especializadas em cinema fantástico. O evento tem como foco novas cineastas europeias, selecionadas através de pitching, mas o público geral também pôde se inscrever e conferir as atividades, que contaram com participantes ilustres de outras partes do globo. A conferência foi dividida em seis mesas de debate: Referências culturais e sociais na história do cinema, Educação: o viés do olhar, Liderança e referências no gênero fantástico: a criação de um storytelling por mulheres realizadoras, Explorando o legado da fantasia, Criando mundos surpreendentes: o papel da mulher nos efeitos especiais de filmes fantásticos e, por fim, um encontro com a cineasta Mary Lambert, diretora do filme de horror mais lucrativo já dirigido por uma mulher: Cemitério maldito (Pet Sematary, 1989). A seguir, trago alguns momentos de destaque.07

Mesa “Referências culturais e sociais na história do cinema”.

A primeira mesa foi formada pela crítica e pesquisadora australiana Alexandra Heller-Nicholas e a crítica canadense Alexandra West. Heller-Nicholas é um dos principais nomes nos estudos do horror feito por mulheres, tendo escrito o livro pioneiro 1000 Women in Horror: 1895-2020, onde compila em verbetes e entrevistas diretoras do mundo inteiro – a participação da australiana foi um dos grandes destaques da conferência. Na mesa, as convidadas discutiram sobre os progressos realizdos neste âmbito, facilitado pelos esforços de distribuidoras internacionais como a Vinegar Syndrome, que tem lançado luz sobre a obra de diretoras marginalizadas como Roberta Findlay e Doris Wishman e realizado um importante trabalho de arquivo. Fugindo do lugar-comum que geralmente predomina nos debates sobre o tema, Heller-Nicholas também chamou a atenção para a tendência de um essencialismo biológico quando se fala sobre mulheres fazendo horror quando, na verdade, as perspectivas são diversas, mesmo dentro de uma abordagem feminista. Ela trouxe ainda para a discussão uma questão incontornável: se estes filmes são tão diferentes entre si, o que eles teriam em comum além do fato de terem sido dirigidos por mulheres? A resposta estaria não nos filmes, mas na recepção, pois quando sabemos que uma mulher é a peça criativa por trás da obra, existe uma tendência em reajustarmos o olhar para ela. A mesa também revelou grande entusiasmo em relação à produção contemporânea de horror australiano, que conta com o surpreendente número de cinco longas-metragens sendo exibidos no festival este ano.

A polonesa Agnieszka Smoczynska, de A atração (The Lure, 2015), a italiana Milena Cocozza, de O garoto do leito 6 (Letto numero 6, 2019) e a galega Ángeles Huerta, de O corpo aberto (2022) discutiram sobre a dificuldade de financiar filmes de gênero em seus respectivos territórios, quando não há uma tradição contínua nesse tipo de cinema (do final dos anos 1950 a meados dos anos 1990, a Itália produziu algumas das grandes obras-primas do horror mundial, mas há muito tempo o país de Bava não apresenta novidades neste cenário). De acordo com Smoczynska, há um grande constrangimento dos poloneses em relação ao horror, o que fez com que a diretora enfrentasse dificuldades quando precisou defender seu primeiro longa-metragem de distribuidores que queriam descaracterizá-lo como filme do gênero. Quem veio em sua defesa foi Agnieszka Holland, uma das grandes cineastas europeias, e também sua conterrânea. Já Cocozza contou que um dos acontecimentos importantes para a sua carreira foi ter conhecido Lucio Fulci, que muito lhe inspira. Em certo momento do debate, a conversa pareceu andar dois passos para trás quando Huerta evocou Titane (Julia Ducournau, 2021) e defendeu que a primeira parte do filme (violenta e sensual) tem uma abordagem essencialmente masculina, enquanto a segunda parte do filme (dramática e terna) estaria alinhada a uma perspectiva feminina, ideia endossada por participantes na plateia. Essa concepção parece se alinhar justamente ao essencialismo biológico que Heller-Nicholas mencionou na mesa anterior e ignorar a individualidade do olhar da cineasta em questão.

Mesa “Liderança e referências no gênero fantástico: a criação de um storytelling por mulheres realizadoras”.

Saindo um pouco da direção e pondo em evidência mulheres que literalmente colocam a mão na massa, a última mesa do dia contou com as técnicas de efeitos especiais María Luisa Pino, Montse Ribé e Mónica Murguía, sendo as duas últimas de uma geração bem posterior à de María Luisa, também montadora. As três mulheres compartilharam histórias sobre como começaram as suas carreiras, suas maiores dificuldades e os segredos para quem quer começar a trabalhar com efeitos especiais para cinema fantástico (basicamente, treinar bastante com o que se tem à mão, incluindo objetos que normalmente seriam descartados no lixo). A conversa terminou com a defesa dos efeitos práticos em relação aos digitais, “que podem beirar à perfeição, mas não têm alma. Além disso, a perfeição não existe no mundo real”, concluiu María Luiza.

Deixo a conferência animada por perceber que a valorização de mulheres que contribuíram ao cinema fantástico e a inserção de novas profissionais no meio tem sido uma condição sine qua non nos bons festivais contemporâneos, porém sinto que temos andado em círculos em muitos aspectos. É necessário avançar no debate, trazer olhares que provoquem a reflexão; caso contrário iniciativas como essa não passarão de mera medida protocolar. 

Pesquisadora, crítica, curadora e realizadora cearense radicada em São Paulo, escreve regularmente sobre filmes para livros, encartes de homevideo e catálogos de mostras, além de integrar curadorias e júris de festivais pelo país. Doutoranda em Comunicação Audiovisual (UAM-SP) com pesquisa sobre filmes de horror brasileiros feito por mulheres, ministra palestras e cursos livres sobre cinema. Atualmente, realiza dourado-sanduíche como pesquisadora convidada na Universidade de Sorbonne (Paris). Mantém a revista eletrônica Les Diaboliques, com foco em filmes de horror.

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