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Rasga mortalha

Entrevista com Mozart Freire

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Mozart Freire é um jovem realizador cearense, com três curtas-metragens no currículo. O primeiro deles, Cinemão (2015), mostra as práticas comuns nos cinemas eróticos do centro da cidade. Janaína Overdrive (2016), seu segundo filme, é uma ficção científica inventiva sobre uma transciborgue que tenta sobreviver em um Brasil futurista. O filme fez um excelente passagem pelos festivais. Pop Ritual (2019) é o terceiro curta do diretor e a sua primeira incursão nos filmes de horror. O filme, que faz uma espécie de mescla de história de vampiro com exorcismo e erotismo, foi eleito o melhor curta-metragem cearense de 2019 pelos críticos da Aceccine, e está disponível para ser assistido na mostra que a associação preparou para a quarentena. Como bônus, você pode ler no site da mostra um texto crítico que escrevi sobre o filme de Mozart. A seguir, veja a entrevista que fizemos com o diretor.

Still do curta “Pop Ritual”.

01. Como começou a sua história com o cinema fantástico?

Tudo começou quando eu comecei a frequentar um cineclube aqui de Fortaleza chamado Filmes Malditos da Meia-noite. Esse evento era realizado pelo Alex Oliveira e exibia filmes B, trash e de terror. Muita coisa gore e escatológica. Havia um sessão por mês, começava à meia-noite e chegou a acontecer em vários lugares. Em 2012 as doze edições do cineclube aconteceram em um cine pornô do centro da cidade. O espaço era dividido em sala de exibição, bar com música (às vezes uma banda) e cabines. Era literalmente “sexo, drogas, cinema e rock’n’roll”. Foi nesse cineclube que realmente virei fã de cinema fantástico, trash e terror. Eu já assistia muitos filmes desses gêneros, mas com o cineclube me senti parte de algo.

Nesse cineclube eu fiz muitas amizades com estudantes de cinema. Na época eu fazia ciências sociais. Embora eu gostasse muito dos filmes, eu não conseguia acompanhar meus amigos do cinema quando falavam sobre os filmes. Eles tinham um conhecimento técnico e um jeito de falar dos filmes que eu ao ouvir me sentia um “cachorro assistindo uma missa”, daí comecei a procurar os cursos de cinema da cidade. Assim, fiz curso na Casa Amarela Eusélio de Oliveira, fiz curso na Vila das Artes e no Porto Iracema. Nesses cursos, comecei a aprender a linguagem do cinema. Foi no curso de audiovisual da Vila das Artes que realizei meus dois primeiros curtas Cinemão (2015) e Janaína Overdrive (2016).

02. O que significa, para você, fazer cinema queer no Nordeste do Brasil?

As minhas maiores referências, como falei, vêm desse cineclube que frequentei, no qual assisti Pink Flamingos, Rocky Horror Picture Show, Hedwig and the Angry Inch. Esses filmes são muito influentes para mim e a partir deles descobri muitos outros. Além disso, o que me orientou na realização de meus curtas foi não incorrer no erro de reproduzir o machismo, a homofobia e a misoginia que existe em muitos filmes b, trash e de terror.

Dessa forma, dentro dos limites do meu local de fala, da minha orientação sexual e visão de cinema. O que posso falar sobre “fazer cinema queer no Nordeste do Brasil” é ser atrevido, é buscar outras histórias que não possuam uma narrativa heteronormativa. É colocar em questão uma sociedade e um público conservador. É alargar as possibilidades de diferentes relações entre corpos e afetos no cinema.

Claro que o “fazer cinema queer no nordeste do Brasil” é muito maior do que isso. É ter equipes todas: roteiro, direção e produção, formadas por gays, lésbicas, travestis e transexuais produzindo e contando suas próprias histórias. Fazer cinema queer no Brasil também virou alvo de perseguição e intolerância pelo governo Bolsonaro que barrou a captação de recursos para obras relacionadas a pluralidade sexual e de gênero.

Nesse sentido, fazer cinema queer no nordeste do Brasil, assim como nas outras regiões, é diversificar os dramas sociais, é lutar por mais representatividade homoafetiva nas histórias e nos sets de cinema. E além disso, é lutar pela democracia, lutar contra a censura das minorias e da arte.

03. Seus filmes têm como característica uma sexualidade muito evidente. Poderia falar um pouco sobre isso?

Acho que isso também remete-se ao cineclube que frequentei. Como falei ele era realizado em um cine pornô do centro. Nessa mesma época, na faculdade de ciências sociais, comecei a ler a dissertação de um professor chamado Alexandre Fleming intitulada “No escurinho do cinema: cenas de um público implícito”, que tratava da sexualidade e sociabilidades que se construíam nos cinemas pornôs gays do centro da cidade de Fortaleza. Essa leitura e a frequência no cine pornô onde ocorria o Filmes Malditos da Meia-noite me motivaram a frequentar esses cines em seus diversos horários e funcionamentos. Motivado pelo interesse de um estudante de cinema, assim como de um sociólogo e por que não dizer também pelo desejo, roterizei e dirigi meu primeiro curta, chamado Cinemão (2015), que trata justamente do desejo e da sexualidade dentro dos cines pornôs gays. Assim, um coisa foi levando a outra. Acho que fui atravessado por essa vontade de desejo e sexualidade nos meus filmes e continuei a construir histórias a partir dessas pulsões, sempre seguindo esse fio condutor para as tramas.

04. A ficção científica tem futuro?

No início dessa quarentena eu estava justamente pensando nisso. No começo do isolamento social eu vi passar aqui no bairro um carro com um aparelho de som avisando sobre a gravidade da pandemia do covid-19 e a necessidade da quarentena. No entanto, o carro de som não era um carro do governo federal ou estadual, não era um veículo estranho como costumamos ver em filmes. Era o carro de um senhor aqui do bairro, um Del Rey. Ele faz esse mesmo serviço de carro de som para o mercadinho e a pizzaria do bairro. Lembrei muito do Dj Urso em Bacurau. Essa cena me tocou de uma forma que comecei a pensar na ficção científica e sua capacidade de abordar governos autoritários, desastres biológicos e quarentena.

Acho que o contexto em que estamos vivendo coloca a ficção científica em uma liminaridade. Ou ela vira outra coisa para poder falar do futuro de outra forma ou ela perderá sua força porque o presente está acontecendo como uma grande história de ficção científica. Se algum roteirista imaginasse um roteiro no qual um país subdesenvolvido tivesse que enfrentar uma pandemia, buscando como saída a quarentena e ao mesmo tempo tivesse um governo estúpido, fascista que trabalha contra seu povo deslegitimando a quarentena, contrariando a ciência e todo o resto do mundo seria dito que a mão pesada do roteirista era exagerada mas isso é o que está acontecendo atualmente no Brasil.

Só fico pensando em Méliès, que chegou a lua usando uma escada, ou Ardiley Queirós em Branco sai preto fica que utilizou como máquina do tempo um container com uma luz colorida e um pancadão. Ou até mesmo Bacurau. Acho que a ficção científica poderia seguir esse caminho de uma “engenhosidade avacalhada”, mas quais medos ou dramas sociais ela vai abordar?

05. Que artistas te inspiram? Por quê?

Gosto muito de Joel-Peter Witkin, um fotógrafo norte-americano. Admiro a estética e composição de suas fotografias, sempre que penso a arte de um curta eu retorno às fotografias do Joel-Peter para me inspirar. Gosto dos filmes do David Cronenberg e como ele aborda as possíveis modificações do corpo humano, seja por mutação ou desastre tecnológico. Adoro os líquidos e viscosidades que esses corpos excretam. Gosto do Mojica Marins pelo seu pioneirismo no cinema de terror nacional, suas artimanhas e vontade de realizar cinema sem recursos. Gosto também da Gabriela Amaral por seus filmes promoverem um espécie de terror que surge a partir do enfrentamento de uma situação específica seja em um restaurante ou no luto por um ente querido. Admiro também Juliana Rojas pela habilidade que ela possui de elaborar dramas do cotidiano com vários elementos do cinema de terror.

06. Que filme você indicaria para as pessoas assistirem nesse momento em que estamos?

Três filmes que gosto muito e revi nesse momento de quarentena são Nosferatu (1979) do Herzog. O Enigma de Outro Mundo (1982) do John Carpenter e Gummo (1997) do Korine.

Pesquisadora, crítica, curadora e realizadora cearense radicada em São Paulo, escreve regularmente sobre filmes para livros, encartes de homevideo e catálogos de mostras, além de integrar curadorias e júris de festivais pelo país. Doutoranda em Comunicação Audiovisual (UAM-SP) com pesquisa sobre filmes de horror brasileiros feito por mulheres, ministra palestras e cursos livres sobre cinema. Atualmente, realiza dourado-sanduíche como pesquisadora convidada na Universidade de Sorbonne (Paris). Mantém a revista eletrônica Les Diaboliques, com foco em filmes de horror.

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