conecte-se conosco

Críticas

A maldição da Chorona (2019)

Publicados

em

Nos anos 1970, uma viúva (Linda Cardellini, a Velma de Scooby-Doo) trabalha como assistente social e cria um casal de filhos totalmente sozinha. Ela é enviada à residência de uma mulher (Patricia Velasquez, de A múmia) em situação semelhante, sozinha com dois filhos. A casa da mulher, de origem latina, está repleta de velas, símbolos místicos e os dois meninos estão trancados em um armário sob sua feroz vigilância. Inicialmente, a assistente acredita que os dois sofrem maus tratos e estão em cárcere privado, mas então percebe que aquilo era apenas uma tentativa de proteger as crianças de um espírito maligno conhecido como “La Llorona” (A Chorona), que em seguida passa a perseguir os filhos da protagonista.

A lenda de origem mexicana tem muitas versões diferentes, sendo abordada no filme a da mãe que matou os dois filhos afogados e, arrependida, se matou em seguida. O fantasma dela vagueia a chorar, atraindo e roubando para si os filhos de outras mulheres. Muitas mães usam a história como uma forma de fazer com que suas crianças se comportem – algo como o Velho do Saco aqui no Brasil. No cinema mexicano, o folclore foi adaptado diversas vezes, destacando-se La Llorona (1960), de René Cardona e La maldición de la Llorona (1963), de Rafael Baledón.

Uma das principais vertentes do horror é a católica, o clássico embate maniqueísta entre o bem e o mal. Goste-se ou não, este imaginário é uma rica fonte de inspiração para histórias assustadoras, seja de maneira mais explícita, como nos filmes de exorcismo, ou de forma secundária, como em Carrie, a estranha (1976), que lida com o fanatismo religioso. Porém, o que se vê em Invocação do Mal e derivados, como Annabelle, A Freira e agora este A maldição da Chorona, é uma abordagem ingênua e festiva do catolicismo, feita de maneira simplória e leviana. Uma personagem se redime e tudo é resolvido com o auxílio de uma cruz.

O fantasma tem todos os seus passos previstos, como se seguisse uma cartilha sobrenatural. Com sua cultura de almanaque, um ex-padre, atual curandeiro (Raymond Cruz, de Breaking Bad), mistura o melhor dos dois mundos no combate ao espírito, na tentativa de proteger a família que está sendo atormentada. Tarefa esta que acaba sendo relativamente fácil de executar, já que a Chorona aprendeu o beabá e o repete sem surpresas. Onde está o caos, o elemento imprevisível? Ao meu ver, é onde reside, em grande parte, a beleza do gênero.

É evidente que os produtores se deram conta de que há uma fórmula eficiente para o grande público, já que boa parte dos filmes do universo Invocação do Mal segue o modelo que consiste em um final em que o problema é resolvido (portanto as pessoas poderão ir tranquilas para casa), mas de praxe é deixada uma pequena sugestão de que aquela história vai ter uma sequência. Ou seja, dependendo do desempenho nas bilheterias, aquele universo ganha mais um filme, que por consequência pode ter mais um desdobramento, uma ramificação. É criada, então, uma frágil conexão para relacionar um filme menor e desleixado a um grande sucesso. Isso parece uma forma do cinema simular a cultura da narrativa seriada, que hoje domina o mercado audiovisual.

O alívio cômico também é um ponto problemático, outra marca dessa franquia. Sempre descabido, poderíamos dizer anticlimático, caso houvesse algum clima. Existe uma pequena tentativa de se aprofundar na personagem da mãe. É comovente ver aquela mulher lutando para criar os filhos sem qualquer rede de apoio (o interessante de assistir ao filme em uma pré-estreia para o público foi observar as reações acaloradas e por diversas vezes injustas. Ao meu lado, na cena em que a mãe servia uma daquelas refeições prontas para os seus filhos, um rapaz gritou “que mãe é essa, nem se dá ao trabalho de preparar uma comida de verdade para as crianças!”), mas a interação entre as personagens é limitada, com diálogos quase sempre pragmáticos. O drama, quando bem trabalhado, é um potente aliado da narrativa de horror, porém não há atmosfera, espaços vazios para reflexão, apenas uma sequência de sustos ruidosos.

Não deixa de ser interessante que A maldição da Chorona tenha surgido justamente agora, quando o governo Trump aplica uma política severa de intolerância aos imigrantes mexicanos. Ao representar a cultura e a crença latina de maneira exótica e caricata, presta um desserviço à questão da intolerância religiosa, já que no mínimo sugere que a população mexicana, ao se estabelecer no país, leva consigo suas maldições.

Pesquisadora, crítica, curadora e realizadora cearense radicada em São Paulo, escreve regularmente sobre filmes para livros, encartes de homevideo e catálogos de mostras, além de integrar curadorias e júris de festivais pelo país. Doutoranda em Comunicação Audiovisual (UAM-SP) com pesquisa sobre filmes de horror brasileiros feito por mulheres, ministra palestras e cursos livres sobre cinema. Atualmente, realiza dourado-sanduíche como pesquisadora convidada na Universidade de Sorbonne (Paris). Mantém a revista eletrônica Les Diaboliques, com foco em filmes de horror.

Continue lendo
Clique para comentar

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *