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Textos para catálogos

O mundo é culpado (1950)

A vida após o ultraje

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Em 2016, uma das cenas de medo mais marcantes na cinematografia brasileira integrava o curta-metragem mineiro Estado itinerante, da cineasta Ana Carolina Soares. O filme é sobre uma mulher que evita ficar em casa por ser vítima de violência doméstica e, na cena em questão, um grupo de amigas reunido em um bar é ameaçado pela presença de alguns motoqueiros, que tentam intimidá-las com o barulho do motor. Uma vez que as discussões sobre o horror estão em evidência, parece válido trazê-la para as análises de filmes que abordam diretamente as questões da violência contra a mulher.

Em 1949, Ida Lupino vinha de uma carreira de quase 20 anos como atriz, quando fundou com o seu marido, Collier Young, a produtora independente The Filmmakers. Os filmes realizados pela produtora tinham baixo custo e pretendiam discutir uma série de problemas sociais. No ano seguinte, Lupino escreveu e dirigiu O mundo é culpado, que traz o estupro como questão central. O estupro é um tema recorrente no cinema desde muito cedo, servindo como elemento dramático, mas raramente tendo como foco os danos sofridos pela vítima, como ela lida com o trauma. Portanto, o filme de Lupino surge como uma alternativa para este preceito.

O mundo é culpado é angustiante desde os créditos iniciais, com uma mulher correndo sozinha pela cidade escura como se tentasse escapar de alguém, o que dá o tom para a sequências de tensão que virão a seguir. A primeira cena mostra a protagonista Ann Walton (Mala Powers) apressada para um compromisso, indo comprar bolo em um carrinho que serve café e doces. Apesar de seu evidente desinteresse, o vendedor e futuro agressor assedia a moça e questiona sobre o fato de que, se ela está comprando dois pedaços, certamente tem um namorado com quem vai se encontrar. Algum tempo depois, vem a confirmação: escutando uma conversa entre Ann e uma colega de trabalho, o homem descobre que a menina está noiva e vai se casar em breve. Lupino constantemente filma apenas as mãos dele, que invadem o quadro enquanto as garotas conversam. Mostrando somente suas mãos, pela ordem dos gestos, Lupino consegue captar o descontentamento do homem com a novidade sobre o casamento.

Um dia, Ann termina tarde o trabalho e precisa caminhar sozinha até sua casa. O vendedor de bolos, que tem uma visão privilegiada da fachada do trabalho de Ann, percebe a sua saída e inicia uma perseguição que dura longos e quase insuportáveis cinco minutos e meio. Quando o algoz alcança a vítima, a câmera afasta-se.

O mundo é culpado é um filme sobre violência física, mas também sobre violência moral. São muitos olhos e bocas julgando Ann após ela ter sofrido o estupro. Incapaz de conviver com a vergonha e a culpa que normalmente recaem sobre as vítimas deste tipo de crime, Ann começa a delirar, sem conseguir diferenciar o que é verdade do que está se passando apenas em sua mente. É um filme de emoções, as quais praticamente se materializam, sempre representadas de maneira muito visual. O que os personagens sentem em seu íntimo acaba se manifestando fisicamente, através de uma resposta corporal, a exemplo da cena em que, ansioso, o noivo de Ann destrói o sofá da casa dos sogros.

Lupino evita recursos corriqueiros ou cansativos, como uma narração em off, para falar dos sentimentos mais íntimos de seus personagens, o que faz do filme primoroso para aqueles que apreciam um bom trabalho com as imagens. A cena em que a cabeceira da cama se interpõe entre a câmera e a personagem apontam para uma tragédia que está por vir (antecipam as grades da prisão em que Ann é encarcerada após a tentativa de assassinato de um segundo assediador); assim como o seu figurino representa a mudança do seu estado de espírito.

Nesse sentido, o filme revela certa influência expressionista ao superdimensionar uma situação desagradável, como as pessoas cochichando na rua e falando sobre ela, ou o ruído repetitivo das carimbadas do colega de trabalho, sua cadência; tudo a descontrola, sugerindo uma associação ao ritmo dos corpos e sua movimentação durante o ato sexual. O mesmo recurso seria utilizado com efeito semelhante no filme Os inocentes (1961), de Jack Clayton, em que Deborah Kerr interpreta uma governanta que sofre de uma severa repressão sexual.

O mundo odeia-me, que Lupino realizaria em 1953, é frequentemente citado como seu filme de horror, pois conta a história de um psicopata que coloca em risco a vida dos homens que lhe dão carona. Talvez por ser muito menos visto, não se fale sobre o potencial horrífico de O mundo é culpado. Ainda assim, é muito interessante como Lupino filosofa sobre o medo neste filme, através de um trabalho criativo e aprofundado em torno das ansiedades originadas após um trauma sexual. Sua protagonista sofre de paranoia, perde a noção do bom convívio social adquirido desde a infância, a ideia de que todos os homens são bons. Em vez disso, Ann imerge numa espécie de dimensão paralela em que todos os homens são monstros até que se prove o contrário. Este tipo de representação do medo é muito frequente nos chamados filmes de horror psicológico, em que, por trauma ou repressão de infância, a personagem (sempre feminina) passa a ter alucinações. Alguns exemplos disso são Chantagem e confissão (1929) e Repulsa ao sexo (1965), que, assim como o filme de Lupino, fazem uso inventivo da linguagem audiovisual para dar forma a estes monstros.

Não seria exagero dizer que O mundo é culpado é precursor dos filmes de estupro e vingança. Contudo, por se tratar predominantemente de um longa-metragem dramático e, pelas escolhas artísticas da cineasta, o tema é abordado com cuidado e sensibilidade, sem jamais se refestelar na angústia da vítima. Mas a ideia que fica é que, seja através da violência doméstica, como em Estado itinerante, ou por meio do estupro, como no filme de Lupino, é tudo sobre o ultraje do corpo. Sobre ser mulher e não poder decidir quando um homem vai tocar-lhe, sobre o pavor de não ter o domínio de sua própria vida. Deste modo, podemos dizer que o horror está nos olhos de quem vê.

Texto publicado originalmente no site da mostra Ida Lupino: Subversão e resiliência, em dezembro de 2017.

Pesquisadora, crítica, curadora e realizadora cearense radicada em São Paulo, escreve regularmente sobre filmes para livros, encartes de homevideo e catálogos de mostras, além de integrar curadorias e júris de festivais pelo país. Doutoranda em Comunicação Audiovisual (UAM-SP) com pesquisa sobre filmes de horror brasileiros feito por mulheres, ministra palestras e cursos livres sobre cinema. Atualmente, realiza dourado-sanduíche como pesquisadora convidada na Universidade de Sorbonne (Paris). Mantém a revista eletrônica Les Diaboliques, com foco em filmes de horror.

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